segunda-feira, 26 de abril de 2010

Insônia

Sonhando:


Me acorda de manhã pra dizer que vai embora
Levanta durante a noite pra sentir os pés no chão
Coloca as mãos no rosto para esconder os pensamentos
Se afasta de tudo pra tentar recuperar o juízo
Respira devagar pra não dizer que errou
Segura minha mão, mas não faça-a tremer
Solta seu último gemido sufocado
Escorre dentro de mim o seu gosto amargo
Conduz o movimento que enaltece a sensação
De estar aqui;
De te ter aqui;
De te ver assim...
Deita-se ao relento e me deixa procurar com as mãos
O lugar certo que te faz esquecer onde você está
Nunca quis mostrar ou nunca quis induzir?
O muito é muito pouco pra me fazer entender
Mas se destranquei as portas 
Entre sem bater


Quando o sono finalmente vem:


Roupas são fantasias para pessoas como nós
Cobertas pela alma densa, de verdades
Ainda espero te encontrar revestido apenas de sentimentos corpóreos
Ainda espero poder tocar em seus medos e desejos
Ainda espero poder comprar distinção
Ainda espero poder carregar essa vida...


(minha própria voz)
- Vou tentar dormir agora. Muita coisa pra fazer amanhã....


 Interrompida da minhas divagações e entreouvindo conversas em algum aposento ao lado, é sempre assim. À noite, facilmente meu corpo estará em meu quarto. Terrível é a vida de quem possui corpo e mente separados, como dois braços porém cada qual cumprindo uma função distinta
 Às vezes creio enlouquecer diante das impossibilidades. Controlo muitos impulsos, fortes o bastante para fazer uma pequena parte do mundo parar e, assim, passar a fazer sentido. Subjugo a vontade, já essencial, do dia em que nada mais precisará ser dito. Que te ouço dizer que vai embora, no amanhecer, e que me dá tempo e espaço pra fazê-lo voltar. Espaço nesse mundo, um universo que, senão eterno, é único.
 São tempos de fúria. Cada pedaço de mim pulsa constantemente, provoca palavras ditas, palavras escritas, insônia e orgasmos. Uma convulsão por dia, epilética antes de dormir e anêmica ao acordar.
 Ando a procurar por anestesia. Algo que adormeça todo o meu corpo e segure firmemente minha mão, minha boca e meus pensamentos, que me guarde dentro de mim mesma. Alguma anestesia imaginária porém bem localizada.
 Antes que eu me perca, antes que eu me perca de vista.





segunda-feira, 19 de abril de 2010

Direitos de uma canção


Se eu pudesse mostrar o que você me deu
Eu mandava embrulhar, chamaria de meu.
Melhor forma não há, pra guardar um amor.
Então preste atenção ou me compre uma flor
Vem, me faz um carinho, me toque mansinho,
Me conta um segredo, me enche de beijos.
Depois vai descansar, outra forma não há
Como eu te valorizo, eu te espero acordar.
Se eu ousar te contar o que eu sonhei.
Pode até engasgar, pagaria pra ver.
Melhor forma não há, pra provar meu amor
Eu te presto atenção, tento ser sua flor.
Vem, te faço um carinho, eu te toco mansinho,
Te conto um segredo, te encho de beijo.
Depois vou descansar, não vou te acompanhar.
Espero que entenda.
Vem, te faço um carinho, te toco mansinho,
Te conto um segredo ou te encho de beijo,
Depois vou descansar, não vou te acompanhar.
Espero que entenda e volte pra cá.

Te Valorizo - Tiê.





sábado, 17 de abril de 2010

Sobre os cinco sentidos

Pt. 5 - Final


 Relato de algumas horas atrás:


 Hoje acordei e senti o gosto de mudança.
 Passo a passo, me encaminhei para todos os cômodos da casa, em direção a um novo sentido de existência. Recém-saída de um sonho devastador, a realidade veio à tona assim que coloquei meus pés no chão. Como um dia qualquer, era um dia perfeito. Hoje eu poderia passear pela vida.
 Fui percebendo que tudo ganhara uma nova forma, uma nova viscosidade, uma nova causa. Rindo das minhas próprias tolices, perdendo o fôlego ao tentar manter a água dentro das mãos, desenhando em todas as paredes do banheiro impregnadas pelo vapor d'água. E então enrolava-me de qualquer jeito em uma toalha fina e deixava a frialdade da manhã cobrir minha nudez. Me joguei na cama, suspirando, exalando toda a tensão. Precisava me render ao dia que estava por vir. Perdida entre os diversos tecidos que se agarravam em mim, excitando-me com toda a estranheza de seres inanimados corresponderem aos meus desejos. Seguindo um mesmo ritmo: tocada, invadida, por dentro, por fora, invadida, mais profundamente e mais rápido...
 Era o efeito Trainspotting de viver.
 Excesso de mim mesma, transbordando por todos os poros. Cheguei ao ápice em questão de segundos. Havia passado por sensações intensas demais em um tempo de menos. Urgente era a necessidade de extravasar o que sou, que tenho fome de primeiras vezes. Eu havia chegado à estaca zero novamente, agora sim pronta para todo e qualquer embate.
 Rapidamente me vesti e saí de casa. Vento gélido e sol morno, meu clima preferido. Tempo bom, eu melhor. 
 Por todo o caminho fui ouvindo Interpol, "No I In Threesome", minha favorita. Um passo, dois, três. Threesome é um termo que designa todo tipo de relacionamento a três, sendo objetos, sentimentos, fatos, pessoas. Contava meus passos de três em três, cantando que "sozinhos podemos lutar, então apenas deixe-nos ser três esta noite". Muitas pessoas passaram por mim no caminho, me deixando com vontade delas. Sentia o gosto das "dades" descendo como água da cabeça aos pés: Vontades, saudades, felicidades, vontades, vontades...Lembrava das melhores partes de mim distribuídas pela cidade e o excesso de si mesmo já não era suficiente, queria algo mais para recordar. Uma mulher empunhando uma vassoura me fez lembrar da jovem senhora amiga dos ladrões do subúrbio. Uma criança andando de mãos dadas com a mãe me trouxe à cabeça o pequeno desenhista que marcava seus traços no mundo há apenas onze anos. Não pude deixar de sorrir. Não queria deixar de sentir aquilo.
 Em meus ouvidos a voz cantava exaustivamente: "So just let us be three tonight" e o threesome se repetia. Inevitavelmente, me lembrei dos olhos de um garoto que me ensinava a crescer, gigante, maior que as coisas à sua volta e melhor que qualquer definição de grandeza. Inevitavelmente, me lembrei do sorriso de um homem que me dera uma espada e me ensinava a lutar, melhor que qualquer definição de beleza, forte o bastante para segurar seu mundo na ponta dos dedos.
 As quatro pessoas mais importantes da minha vida, os quatro sentidos anteriores distribuídos em cada um. Eu, o quinto elemento, sou o gosto de descobri-los , de me incorporar a cada um de uma forma que encerre o ciclo.
 Era o efeito Trainspotting de viver e amar. Olhos abertos, pensamentos soltos, verdade nua e crua. Tudo uma questão de ouvir, ver, sentir, aspirar, degustar, todas experimentadas de uma só vez, só hoje. Um dia qualquer, um café meio frio, um clima agradável, desejos pulsando conforme as batidas do coração, meus segredos revelados. Um dia perfeito.
 Acordei e senti o gosto do presente.
 Quanto aos cinco sentidos, não terminarão por aqui. Ainda terei muitas páginas soltas, na linha do tempo...
 Saiba que o fim é só um começo.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sobre os cinco sentidos

Pt. 4 - Audição

"Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês..."

 Ontem aconteceu a festa de comemoração do meu primeiro ano de vida. Simples e perfeita. Mesmo para quem a própria existência ainda era algo inédito, o brilho excessivo e as luzes fortes daquele dia foram algo incomparável a tudo até então. Como uma representação do nascimento, pessoas e mais pessoas vinham até a mim, sorriam extasiadas e diziam-me coisas completamente sem sentido: "Ela está tão linda, já é quase uma mocinha, é a cara da mãe, essa vai dar trabalho...". E eu respondia a tudo com um toque na face do indivíduo e um olhar de incompreensão. Poderiam falar o que quisessem, pois a falta de conhecimento das palavras me divertia mais que tudo. Eles eram simplesmente coisas gigantes que andavam, faziam gestos estranhos e idolatravam a minha presença, minha pequena presença e meu minúsculo tamanho físico, fatos que contradiziam a grandiosa ousadia e atrevimento para imitar, criar, pensar e agir, talvez um pouco inadequados para tão pouca idade. "É mal de Julia...", minha mãe dizia, se caso fosse questionada quanto a isso. Cheia de energia, tanto quanto o nome.
 Como o dia 16 de março era dedicado à mim, meus parentes achavam-se no direito de fazer o que queriam, comigo. Era um cuidado inocente e uma terrível tortura para mim. Meu primeiro castigo foi ter que estar vestida de princesa para aquele dia. Como uma boa imitadora, eu tinha talento para incorporar muitas coisas: super-heróis, peões, apresentadores de tv, atores, cantores sertanejos, lutadores de boxe, animais selvagens...tudo, menos princesas. Apesar de não saber descrever a sensação, eu me sentia travestida, irreconhecível. Já tinha visto nos lugares onde havia passado que princesas representavam o sonho de consumo das menininhas e tudo o que eu não queria ser: feitas de cera, sem expressão, robôs na eterna espera pelos príncipes e reinados perfeitos, tolas, patéticas. Era isso. A minha vontade era entrar no ritmo da música que tocava, ser o cowboy da noiva, enfrentar os batalhões, os alemães e seus canhões, mas a fantasia carecia de cuidado e carinho da minha parte. Aceitei-a, só daquela vez.
 Passeando pelo meu reinado particular, no caso a minha festa, conheci uma outra criança, um garoto que aparentava ser um pouco mais velho e agia de acordo. Isolado a um canto, parecendo um estranho no ninho, me encantei de imediato por aquele pequeno. O assunto surgiu espontâneamente, meio de qualquer jeito porém muito real, mais real do que qualquer barulho que até então fora escutado. Uma conversa banal por um motivo qualquer, um vocabulário raso devido as respectivas inexperiências retóricas, nossas expectativas perante o bolo e uma relação de igualdade muito forte em um período de tempo muito curto. 
 Passamos o resto da festa juntos, como duas crianças, como dois revolucionários lutando pela mesma ideologia, como dois anjos, como dois demônios, como uma coisa só. Brincando de se descobrir e descobrir um ao outro. Não teve voz que não comentasse a união da princesa e o plebeu, embora agíssemos como dois ogrinhos. 
 Ele se escondia e eu deveria achá-lo. Não, não fuja não, finja que agora eu era seu brinquedo, Chico cantava. Eu era seu pião, porém ele era meu bicho preferido. Esqueci completamente das outras crianças, ao perceber que não era nenhuma delas que eu estava procurando para brincar. Pela primeira vez, eu podia tocar na face de alguém e pronunciar alguma coisa, ir além dos meus limites. Ele não era o príncipe, pelo contrário, agia bem diferente de um. E aquilo era a condição perfeita para eu me render, no meu status de realeza rebelde.

"Vem, me dê a mão. A gente agora já não tinha medo. No tempo da maldade, acho que a gente nem tinha nascido..."

O tempo passou, rápido demais...A festa foi chegando ao fim, as luzes, o brilho, os balões, a fantasia. Ele estava partindo tão depressa quanto havia chegado. Eu, que nunca havia ou haveria de me dar o direito de ser uma princesa, vi minhas vestes serem carregadas junto com o pequeno, e pela primeira vez viver me pareceu ser uma estranha ilusão.

"Agora era fatal, que o faz-de-conta terminasse assim..."

Fui entender muito tempo depois que a princesa e o plebeu era uma denominação muito fraca para João e Maria. Porque, ao contrário do que foi cantado, João foi quem sumiu no mundo sem me avisar. Esqueci-o completamente, até que, muito anos depois e o estágio da mocinha já ter terminado, a história se repetiu. Volta a acontecer, e como revivendo a mais bela canção da minha infância, agora eu era uma louca a perguntar...O que é que a vida vai fazer de mim?