sábado, 17 de abril de 2010

Sobre os cinco sentidos

Pt. 5 - Final


 Relato de algumas horas atrás:


 Hoje acordei e senti o gosto de mudança.
 Passo a passo, me encaminhei para todos os cômodos da casa, em direção a um novo sentido de existência. Recém-saída de um sonho devastador, a realidade veio à tona assim que coloquei meus pés no chão. Como um dia qualquer, era um dia perfeito. Hoje eu poderia passear pela vida.
 Fui percebendo que tudo ganhara uma nova forma, uma nova viscosidade, uma nova causa. Rindo das minhas próprias tolices, perdendo o fôlego ao tentar manter a água dentro das mãos, desenhando em todas as paredes do banheiro impregnadas pelo vapor d'água. E então enrolava-me de qualquer jeito em uma toalha fina e deixava a frialdade da manhã cobrir minha nudez. Me joguei na cama, suspirando, exalando toda a tensão. Precisava me render ao dia que estava por vir. Perdida entre os diversos tecidos que se agarravam em mim, excitando-me com toda a estranheza de seres inanimados corresponderem aos meus desejos. Seguindo um mesmo ritmo: tocada, invadida, por dentro, por fora, invadida, mais profundamente e mais rápido...
 Era o efeito Trainspotting de viver.
 Excesso de mim mesma, transbordando por todos os poros. Cheguei ao ápice em questão de segundos. Havia passado por sensações intensas demais em um tempo de menos. Urgente era a necessidade de extravasar o que sou, que tenho fome de primeiras vezes. Eu havia chegado à estaca zero novamente, agora sim pronta para todo e qualquer embate.
 Rapidamente me vesti e saí de casa. Vento gélido e sol morno, meu clima preferido. Tempo bom, eu melhor. 
 Por todo o caminho fui ouvindo Interpol, "No I In Threesome", minha favorita. Um passo, dois, três. Threesome é um termo que designa todo tipo de relacionamento a três, sendo objetos, sentimentos, fatos, pessoas. Contava meus passos de três em três, cantando que "sozinhos podemos lutar, então apenas deixe-nos ser três esta noite". Muitas pessoas passaram por mim no caminho, me deixando com vontade delas. Sentia o gosto das "dades" descendo como água da cabeça aos pés: Vontades, saudades, felicidades, vontades, vontades...Lembrava das melhores partes de mim distribuídas pela cidade e o excesso de si mesmo já não era suficiente, queria algo mais para recordar. Uma mulher empunhando uma vassoura me fez lembrar da jovem senhora amiga dos ladrões do subúrbio. Uma criança andando de mãos dadas com a mãe me trouxe à cabeça o pequeno desenhista que marcava seus traços no mundo há apenas onze anos. Não pude deixar de sorrir. Não queria deixar de sentir aquilo.
 Em meus ouvidos a voz cantava exaustivamente: "So just let us be three tonight" e o threesome se repetia. Inevitavelmente, me lembrei dos olhos de um garoto que me ensinava a crescer, gigante, maior que as coisas à sua volta e melhor que qualquer definição de grandeza. Inevitavelmente, me lembrei do sorriso de um homem que me dera uma espada e me ensinava a lutar, melhor que qualquer definição de beleza, forte o bastante para segurar seu mundo na ponta dos dedos.
 As quatro pessoas mais importantes da minha vida, os quatro sentidos anteriores distribuídos em cada um. Eu, o quinto elemento, sou o gosto de descobri-los , de me incorporar a cada um de uma forma que encerre o ciclo.
 Era o efeito Trainspotting de viver e amar. Olhos abertos, pensamentos soltos, verdade nua e crua. Tudo uma questão de ouvir, ver, sentir, aspirar, degustar, todas experimentadas de uma só vez, só hoje. Um dia qualquer, um café meio frio, um clima agradável, desejos pulsando conforme as batidas do coração, meus segredos revelados. Um dia perfeito.
 Acordei e senti o gosto do presente.
 Quanto aos cinco sentidos, não terminarão por aqui. Ainda terei muitas páginas soltas, na linha do tempo...
 Saiba que o fim é só um começo.

2 comentários:

  1. Ju, você escreve muito, MUITO bem. *-*

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  2. A última frase é coincidentemente um dos meus fundamentos vitais. Yes, I do shiver.

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