quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sobre os cinco sentidos

Pt. 4 - Audição

"Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês..."

 Ontem aconteceu a festa de comemoração do meu primeiro ano de vida. Simples e perfeita. Mesmo para quem a própria existência ainda era algo inédito, o brilho excessivo e as luzes fortes daquele dia foram algo incomparável a tudo até então. Como uma representação do nascimento, pessoas e mais pessoas vinham até a mim, sorriam extasiadas e diziam-me coisas completamente sem sentido: "Ela está tão linda, já é quase uma mocinha, é a cara da mãe, essa vai dar trabalho...". E eu respondia a tudo com um toque na face do indivíduo e um olhar de incompreensão. Poderiam falar o que quisessem, pois a falta de conhecimento das palavras me divertia mais que tudo. Eles eram simplesmente coisas gigantes que andavam, faziam gestos estranhos e idolatravam a minha presença, minha pequena presença e meu minúsculo tamanho físico, fatos que contradiziam a grandiosa ousadia e atrevimento para imitar, criar, pensar e agir, talvez um pouco inadequados para tão pouca idade. "É mal de Julia...", minha mãe dizia, se caso fosse questionada quanto a isso. Cheia de energia, tanto quanto o nome.
 Como o dia 16 de março era dedicado à mim, meus parentes achavam-se no direito de fazer o que queriam, comigo. Era um cuidado inocente e uma terrível tortura para mim. Meu primeiro castigo foi ter que estar vestida de princesa para aquele dia. Como uma boa imitadora, eu tinha talento para incorporar muitas coisas: super-heróis, peões, apresentadores de tv, atores, cantores sertanejos, lutadores de boxe, animais selvagens...tudo, menos princesas. Apesar de não saber descrever a sensação, eu me sentia travestida, irreconhecível. Já tinha visto nos lugares onde havia passado que princesas representavam o sonho de consumo das menininhas e tudo o que eu não queria ser: feitas de cera, sem expressão, robôs na eterna espera pelos príncipes e reinados perfeitos, tolas, patéticas. Era isso. A minha vontade era entrar no ritmo da música que tocava, ser o cowboy da noiva, enfrentar os batalhões, os alemães e seus canhões, mas a fantasia carecia de cuidado e carinho da minha parte. Aceitei-a, só daquela vez.
 Passeando pelo meu reinado particular, no caso a minha festa, conheci uma outra criança, um garoto que aparentava ser um pouco mais velho e agia de acordo. Isolado a um canto, parecendo um estranho no ninho, me encantei de imediato por aquele pequeno. O assunto surgiu espontâneamente, meio de qualquer jeito porém muito real, mais real do que qualquer barulho que até então fora escutado. Uma conversa banal por um motivo qualquer, um vocabulário raso devido as respectivas inexperiências retóricas, nossas expectativas perante o bolo e uma relação de igualdade muito forte em um período de tempo muito curto. 
 Passamos o resto da festa juntos, como duas crianças, como dois revolucionários lutando pela mesma ideologia, como dois anjos, como dois demônios, como uma coisa só. Brincando de se descobrir e descobrir um ao outro. Não teve voz que não comentasse a união da princesa e o plebeu, embora agíssemos como dois ogrinhos. 
 Ele se escondia e eu deveria achá-lo. Não, não fuja não, finja que agora eu era seu brinquedo, Chico cantava. Eu era seu pião, porém ele era meu bicho preferido. Esqueci completamente das outras crianças, ao perceber que não era nenhuma delas que eu estava procurando para brincar. Pela primeira vez, eu podia tocar na face de alguém e pronunciar alguma coisa, ir além dos meus limites. Ele não era o príncipe, pelo contrário, agia bem diferente de um. E aquilo era a condição perfeita para eu me render, no meu status de realeza rebelde.

"Vem, me dê a mão. A gente agora já não tinha medo. No tempo da maldade, acho que a gente nem tinha nascido..."

O tempo passou, rápido demais...A festa foi chegando ao fim, as luzes, o brilho, os balões, a fantasia. Ele estava partindo tão depressa quanto havia chegado. Eu, que nunca havia ou haveria de me dar o direito de ser uma princesa, vi minhas vestes serem carregadas junto com o pequeno, e pela primeira vez viver me pareceu ser uma estranha ilusão.

"Agora era fatal, que o faz-de-conta terminasse assim..."

Fui entender muito tempo depois que a princesa e o plebeu era uma denominação muito fraca para João e Maria. Porque, ao contrário do que foi cantado, João foi quem sumiu no mundo sem me avisar. Esqueci-o completamente, até que, muito anos depois e o estágio da mocinha já ter terminado, a história se repetiu. Volta a acontecer, e como revivendo a mais bela canção da minha infância, agora eu era uma louca a perguntar...O que é que a vida vai fazer de mim?

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