terça-feira, 23 de março de 2010

Sobre os cinco sentidos

Pt. 2 - Olfato


Hoje eu pude vê-lo. Claramente, sem maiores ou menores obstáculos. Tentei enxergar através de sua alma, mas a intuição me disse para esperar por todas 
as cinco etapas passarem para finalmente tê-lo dentro de mim, como um organismo vivo que parasitasse todas as outras funções. Subi no telhado de sua casa, pisando devagar e escorregando ligeiramente entre as telhas soltas. Uma resma do sol poente brilhava no horizonte, descendo devagar, escurecendo aos poucos, deixando o ar mais gélido enquanto a escuridão me abraçava. Ele estava lá, jogado ao relento, se dormia eu não saberia dizer. Os olhos fechados, a boca semi-aberta, os braços cruzados no peito.
Deitei ao seu lado tentando não despertá-lo desse transe, mal ousando respirar. O efeito da bebida era instantâneo, mas o desejo de me manter sóbria para poder admirá-lo era maior. Ele exalava a Stella Artois, seu perfume típico, e mais alguma fragância que eu não saberia descrever. Era única, era humana, era a minha fonte de escape do mundo real para dentro do mundo dele. Aqueles cheiros e as sensações que eles me causavam me empurravam para mais perto do seu corpo, ainda tentando não tocá-lo, me parando a milímetros de distância. Era uma onda que me cobria o corpo, e mais um pouco eu poderia me afogar. Encostei em seu rosto, me entorpecendo de vez, sentindo, sentindo, sentindo..
Sussurei. 
'" 'Cause you're beautiful in every single way..."
"Andou ouvindo Christina Aguilera?" - Abri os olhos e vi outros dois me encarando, castanho-escuros, me pedindo para devorá-los.
"Eu estava pensando em Elvis Costello"
"Ah..." - ele voltou os olhos para o céu, e sorriu. - "Continue."
"Continuo sussurrando ou olhando para você?"
"Os dois. São mais excitantes juntos."
Pensei: sim, igual a eu e você. Só os dois. Como se não existissem um sem o outro.
"Words can't bring you down..." 
Eu deveria cantar para meu espelho. Ele não precisava de reafirmação. Ele sabia que nada poderia derrubá-lo, principalmente enquanto eu estivesse
viva para poder segurá-lo.
"...so don't you bring me down today."
Mas eu não. Eu poderia cair daquele telhado naquele exato momento, se sua presença não estivesse lá pra me impedir. Então, não me deixe pra baixo..eu pedia, naquela canção.
"Olhe aqui..." 
Abri os olhos. Ele estava mais uma vez me olhando. A boca ainda semi-aberta, embriagada, procurando pela minha. Sentia, pela primeira vez, um hálito
forte como nada existente, como nenhuma bebida qualquer. Ali estava minha redenção, a razão de eu estar sempre ao seu lado, insistindo em silêncio
por um momento só meu, só dele e só meu.
Talvez eu ainda fosse muito ingênua. Mesmo sendo realidade, era quase uma réplica dos meus sonhos. Não tive coragem de tocá-lo, permaneci estática, 
inalando toda aquela tensão, com medo de tudo evaporar se caso eu me movimentasse. Bem de longe, ouvi ele dizer:
"Não posso fazer isso. Não agora."
Não. Não diga isso. Don't you bring me down today..
"Mas isso não quer dizer que eu não quero fazer. Apenas..vamos nos levantar. Vamos acordar. Eu te prometo voltar aqui algum dia."
Vai voltar, vai voltar...
"Só espere, um pouco."

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