quarta-feira, 31 de março de 2010

Sobre os cinco sentidos

Pt. 3 - Tato. Ou Trauma.


 A partir daquele dia, meu nome era Satine. Ela era um clone para mim, era inacreditável que aquela fosse eu mesma, minha própria personalidade. Ao atingirmos os 16 anos, éramos iguais. A minha história e a história dela partiram do mesmo ponto em comum: o trauma.
 Foi o chão de batalha onde minhas decepções amorosas nasceram e cresceram. Onde comecei a me envolver com a auto-destruição, a falta de amor próprio e o abuso de mim mesma. O lugar onde me convenceram que o que eu via no espelho era a imagem cuspida de um monstro feioso. Onde conheci o homem baixinho, branquelo e ranzinza com olhos de raio X, que me despia com um simples olhar. O homem que estuporou as paredes baixas dos meus pensamentos por meses e meses e me deu de presente meu primeiro grande trauma - "a arte do sexo que você não quer", como eu chamo. Um homem sem caráter algum, que refletia as ações infiéis do pai em cada movimento. Que me ligava de madrugada e interrompia meu sono, sussurrando que gostaria de me ver, com uma hipocrisia sedutora.
 Eu, 16 anos. Ainda com o mesmo ritmo dos 14, com o mesmo sorriso e com todas as partes do corpo, externas e internas, intactas. Eu não me fazia de difícil, era praticamente uma criança - inexperiente e ingênua, sonhando com o perigo e com a sensação adictiva de fazer algo ilícito.  Foi quando ele entrou na minha vida, para me estraçalhar como um cachorro raivoso. Porque ele era isso e mais nada - um animal com raiva.
 Nosso primeiro beijo aconteceu antes de qualquer palavra ser pronunciada por nossas bocas, e as mãos nos meus seios vieram antes da língua. Foi terrível e agressivo, mas me senti desejada. Ele era mais velho, me cobiçava e fazia com que eu me sentisse no mínimo bonita, quando havia crescido com o apelido de "besouro" no meu antigo bairro. Naquele momento eu descobri que um beijo não iria pará-lo, que ele não iria desistir enquanto não me possuísse barbaramente e por fim conseguisse dilacerar toda pureza que ainda restava. Era o que eu chamava de síndrome de rei, tinha tudo o que queria bem na palma da sua mão.
 Como um devido monstro, ele estava com um gosto repugnante na boca naquele dia. Eu queria vomitar aquele gosto e o arrependimento irredutível que havia dentro de mim. Suas mãos dentro da minha calça me machucavam, não me davam prazer. Ele não era porra nenhuma, mas eu continuava, pois era uma história para o besouro contar. Eu não tinha mais o que fazer.
 Era um quarto desconhecido, da casa de uma colega ainda mais desconhecida, em uma festa da qual eu não havia sido convidada. Todos os sinais indicavam que não era para eu estar lá. Eu precisava ir ao banheiro, estava bêbada e tonta, só querendo dizer que era o fim da festa para mim e afundar em minha cama para dormir eternamente. Ele levou-me para o quarto da anfitriã, mordendo os lábios inferiores, enquanto a minha maior vontade era pedir para que ele me soltasse e seguisse seu caminho direto para o inferno. Mas eu não conseguia dizer nada. Besouro abaixou as asas.
 Sentei na escrivaninha do quarto procurando me controlar, procurando amenizar minha tontura, quando ele veio em minha direção. Eu estava consciente, porém molenga e nauseada. Seus lábios finos se aproximaram e me arrancaram um beijo indesejado. Olhei para ele como se não estivesse lá, através do seu corpo, procurando bloquear sua imagem, procurando expulsar sua presença por telepatia. Ele me pegou com vigor pelos braços e me jogou na cama. Encarando o teto, pude ver as estrelinhas que brilhavam no escuro, grudadas. Eu costumava fazer pedidos a elas com espírito de criança intocada que não conhece o mundo. Ele estava em cima de mim e eu queria que ele saísse. Tentei empurrá-lo, mas não consegui, não tinha forças e ele segurava meus braços com uma única mão. Parei de reagir e olhei nos seus olhos:
 - Pára, eu não quero!
 - Não fala nada. Relaxa. Vai dar tudo certo.
 - Não, por favor, eu não quero, tô falando sério!
 Naquele momento eu faria qualquer coisa, menos relaxar. Via seus poros oleosos perto demais e suas espinhas pareciam ter se multiplicado. Pareciam estar prontas para explodir e jogar pus nos meus olhos. Tentava afastá-lo a qualquer custo. Mexia-me de um lado para o outro neuroticamente pedindo para ele parar. Gritando que o odiava. Mexia-me de maneira tão brusca que acabei batendo com a cabeça na mesinha-de-cabeceira. Machucou e eu fiquei ainda mais tonta. Virei para o lado e vi uma foto embaçada de uma criança, sorrindo e abraçando a mãe. Sentia nojo de mim mesma deitada em sua cama, em seu cobertor de flores, no seu quarto de paredes rosa-forte. Completamente presa, finalmente me rendi, finalmente me deixei morrer. Fechei os olhos e o deixei me conduzir freneticamente durante vários minutos de dor insuportável. Quando acabou e parou de soltar seu gemido repugnante, se jogou ao meu lado. Então, eu finalmente consegui empurrá-lo.
 - Agora você vai embora, não é? - perguntei, e uma voz estranha saiu da minha garganta. Trêmula, segurei as lágrimas e esperei a tempestade acalmar.
 - Ih, que isso, quer que eu vá embora eu vou...
 - Não estou te mandando embora, apenas sei que vai. É o que sempre faz.
 Ele levantou, vestiu sua bermuda e olhou para minha figura com um ar zombeteiro. Deu uma risadinha sarcástica e saiu do quarto arranhando o chão, sem dizer mais nada.
 Vesti-me rapidamente, corri ao banheiro e olhei no espelho. Eu não conseguia acreditar que aquilo era eu. Eu sentia tanta dor! Aquele momento iria fazer quem eu viria a ser? 
 Corri para fora da festa, alguém me seguiu, condoído pelo meu estado de calamidade. Esse alguém me trouxe para casa, me sugerindo mentiras para contar à minha mãe, algumas das quais eu acabei realmente usando, sem opção nenhuma de roçar nela minha dor. A noite estava perdida para sempre, para afogar minha alma em sensações de culpa. Besouro esmagado.
 No dia seguinte acordei e fui direto ao banho, onde percebi que a calcinha branca estava coberta de sangue. Era sábado e chovia forte, o céu parecia chorar em lamento. Passei horas debaixo de um chuveiro de água fria, chorando e sussurrando.
 Lavando minha pele, esperando que expulsasse o pecado latejante de dentro de mim.
 "Rogai por nós, pecadores...
 Esperando que minha vergonha fosse carregada ralo abaixo e se juntasse à podridão dos esgotos.
 ...agora e na hora de nossa morte...
 Parecia estar ardendo de febre, imóvel sob uma água congelada, desejando não estar viva.
 ...amém."



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